Ainda que não tivesse continuado escrevendo sobre Alice da HBO, aguentei assistir a todos os episódios e esperava fazer uma avaliação final aqui no blog. Por coincidência, a nova microssérie de Luís Fernando Carvalho, Capitu, terminou exatamente no mesmo final de semana. Aproveitando também a discussão levantada por Cássio Starling Carlos no domingo em seu texto "O artista diluído" (infelizmente, nesse link exclusivo para assinantes da Folha), comemorando os 50 anos do caderno Ilustrada, resolvi fazer um texto conjunto para as duas séries seja pelas duas contarem com marcantes figuras femininas como por representarem formas alternativas aos folhetins da televisão brasileira.
Minhas expectativas eram as maiores possíveis quando soube que Alice seria dirigida por Karim Aïnouz ao lado de Sérgio Machado. Karim afirma que "a gente sabia, é claro, que se tratava de um filme de produtor no formato TV, com partes dirigidas por nós dois e por outros profissionais, mas no qual conseguimos imprimir uma personalidade". Mas fica claro que nada era aprovado sem passar pelas exigências feitas pelo canal e pela produtora responsável pelo projeto. Uma dessas exigências (creio eu) era que cada episódio tivesse uma cena de sexo explícito, fazendo com que toda a história virasse pretexto para que elas acontecessem. Esse formato condicionado à polêmica para atrair público talvez tenha sido minha maior decepção, principalmente levando em conta a tradição da HBO americana em dar sinal verde a tantas séries autorais, às vezes até de difícil aceitação a primeira vista.
Por outro lado, L.F. Carvalho comenta que "como no meu caso escrevo e dirijo meus projetos, ser autor é imprimir meu pensamento em todas as áreas e departamentos da produção". Apesar de toda a desconfiança que muita gente tem com a Rede Globo, nota-se que a estética do diretor está de fato presente em todas as cenas de Capitu, sofrendo pouca influência do mercado ou da própria audiência.
Depois do quarto episódio, pouca coisa mudou em Alice. Claro, a personagem sofreu uma senhora queda ao fundo do poço, após abusar de seu egoísmo e de todo tipo de "barato" encontrado em São Paulo. No entanto, os coadjuvantes continuaram tendo histórias fracas que muitas vezes vinham apenas para ser controversas ou servir de pano de fundo para cenas de sexo. Entre elas tivemos o
ménage à trois mais do que previsível entre Dani, Theo e Marcella, o amor lésbico proibido da tia de Alice e sua chefe se envolvendo com seu motorista latino. Vários atores conhecidos também deram as caras, mas nenhum conseguiu se salvar, nem mesmo o quase onipresente João Miguel. A única participação que me surpreendeu muito foi a de Monique Evans, que mostrava segurança no papel de uma colunista famosa com sua loucura incontível.
Mas o grande problema de Alice é que essa história de País das Maravilhas sempre foi levada muito a sério. São tantas as vezes que as personagens fazem essa comparação que já ficava cansativa e deixava até de funcionar. Além disso, a cidade está longe de ter toda essa beleza retratada, como numa das cenas mais risíveis do ano, em que os assaltantes que levariam o carro de Nicholas acabam tendo pena e levando Alice, prestes a sofrer um aborto, ao hospital. Outra comparação a ser feita é com o filme "Se Nada Mais Der Certo" do Belmonte, que deve ser lançado em circuito no ano que vem, onde os mesmo locais badalados da rua Augusta são apresentados com um clima pesado e girando em torno da criminalidade. Claro que são dois extremos, mas que servem para situar melhor o contexto de São Paulo, uma cidade que vive desses extremos.
Uma das coisas que mais reclamei no começo da série era a forma rasa com que Alice era apresentada à cidade. Virando as costas para toda sua vida planejada desde o primeiro episódio, sentia falta de saber como era sua vida em Palmas. Isso aos poucos, com as visitas dos familiares -- que também, de certa forma foram engolidos por São Paulo -- foi sendo preenchido. Mas a grande revelação de Palmas veio no último episódio, um epílogo da vida de Alice depois desse um ano vivendo de sua cidade, onde mais do que entender os motivos para o suicídio de seu pai, também descobre a verdadeira morte de sua mãe. É um dos poucos momentos que dá para perceber um toque dos dois diretores e que na sua busca solitária pela ligação com seu passado volta a mostrar o talento de Andréia Horta, um dos poucos destaques do elenco (que conta com um dos piores atores que já vi na vida, retratando seu irmão).
Tenho de destacar também toda a equipe técnica, desde a fotografia até cenografia junto das próprias locações, mostrando toda a intensidade da cidade. Vale a pena também ir atrás da trilha sonora, grande parte dela disponível
numa excelente matéria do site rraurl.
Luís Fernando Carvalho é um cara decidido. Essa foi a segunda investida de seu projeto Quadrante, em que revisita (literalmente falando também) grandes obras da literatura brasileira. Mas que coragem é adaptar a obra máxima de um dos grandes mestres da literatura, não? Como muita gente, "A Pedra do Reino" nunca conseguiu me atrair. Lembro de ter perdido uma parte logo no segundo episódio e nunca mais ter conseguido encontrar o fio da meada. Talvez se tivesse lido o livro tudo fizesse mais sentido. Ou não.
Pra falar a verdade, nem vem ao caso o livro de Machado de Assis. Quero focar na versão de Carvalho, que ao lado de Dom Casmurro apresenta a sua visão dessa história ao seu público. É um livro que permite essa flexibilidade até pela omissão de muitas passagens na narração do moribundo Casmurro. A começar pelo próprio título já acho que é uma escolha acertada, porque o grande desafio dessa adaptação para uma obra audiovisual é apresentar Capitu, imaginada por muitos e que teria de ser cativante por si só. É nesse ponto que a atriz estreante Letícia Persiles dá um show, introduzida tantas vezes pelo ritmo poético de "Elephant Gun". Muito do que se vê encenado é exatamente isso, as fragmentadas memórias servindo de base para as poesias visuais do autor. Com um excesso de rococó, é verdade.
Com certeza, essa cena da foto ficará marcada pra mim como uma das mais belas do ano. Parece, é claro, uma referência ao videoclipe de Matthew Cullen para
'Chasing Pavements' da Adele, mas a delicadeza de todo esse chão desenhado com giz enquanto Bentinho desconfia pela primeira vez que conquistou o coração de Capitu, é incrível. Vale lembrar ainda a tensão na cena em que Bentinho vive o dilema de matar Ezequiel e também o afogamento de Escobar. Fica claro que o diretor imprime toda sua estética em primeira lugar e isso também traz seus problemas: às vezes tudo parece muito "seguro de si", exagerado na sua teatralidade, beirando até o circense. Só a apresentação de Escobar, ao som de "Iron Man" ao piano, já daria um ato inteiro de um espetáculo do Cirque du Soleil.
Por outro lado o enredo é muito bom, sabendo dosar os momentos líricos, melancólicos e todas as incertezas de Dom Casmurro, até levar a sua grande dúvida. Mas o ponto mais interessante foi manter a estrutura fiel ao livro, dando prioridade ao jovem Bentinho, descobrindo (ou José Dias revelando) sua paixão por Capitu, que é o ponto básico para mais tarde Dom Casmurro tentar ligar as pontas. O que não me agradou nenhum pouco foi essa divisão em subcapítulos, com tantas cartelas e a narração rídicula em voz alta. Acho que com o talento de Melamed não precisava de nada disso, já que ele em cena ou como "espectador" sempre garantiu a fluidez da história. Esse talvez tenha sido o problema quando finalmente entrou em cena Maria Fernanda Cândido com seu véu. Por já termos passado três episódio ao lado de Melamed, ela pareceu completamente ofuscada e algumas vezes óbvia demais (apesar de achar que ela não é nada mais que um rostinho bonito). Outro aspecto bem explorado foi a ironia de seu final, que nunca temina no trágico (como Othello) pela própria incapacidade de seu protagonista e seu desejo egoísta de manter suas aparências.
Por isso, confesso que não entendi essa tentativa de ligar o antigo ao moderno, principalmente na última cena ao sobrevoar a cidade. Não sei se era um paralelo com o ligar as duas pontas de Dom Casmurro ou o quê. Pode ter sido também apenas o asco de ouvir Marcelo D2 numa produção dessas. Mas no conjunto da obra, acho que L.F. Carvalho teve muito mais acertos do que erros em sua adaptação e chega a ser um alívio acompanhar uma série como essa na televisão aberta. Quem sabe ainda podemos esperar até por alguma salvação.
e.fuzii