quinta-feira, 6 de novembro de 2008

[Mostra Int. de Cinema - SP] Take One

Desde o final do mês de Julho, quando Dani falou sobre o filme de "Arquivo X", que não há no blog um comentário sobre cinema. Vamos, então, reparar este erro destacando alguns dos principais filmes vistos na 32ª Mostra Internacional de São Paulo, um dos maiores eventos cinematográficos do país que encerra sua repescagem hoje. Dos comentaristas do blog, eu e Fuzii estivemos lá e vimos alguns dos principais filmes do ano que (espera-se) cheguem logo ao circuito comercial.


Começando por mim, eis aqui meus filmes prediletos da Mostra que recomendo para todo fã do bom cinema:



1. Tulpan, de Sergey Dvortsevoy




Asa é um jovem que acaba de retornar da marinha. Sua família é de nômades que vivem nas distantes estepes do Cazaquistão, cuidando de ovelhas no meio do nada, em região seca e constantes tempestades de areia. Mas Asa quer ficar e se tornar pastor de ovelhas. Pra isso, precisa se casar, mas a única jovem disponível no local o dispensa, por ter orelhas “grandes demais”. Com este simples argumento, é de se pensar que veremos um filme sobre um rapaz tentando conquistar uma moça, em meio a uma região exótica de cultura bem distante da nossa. Mas “Tulpan” ultrapassa toda obviedade e encanta com seu olhar muito próximo e ético para o cotidiano da família do protagonista. O que mais impressiona é como a câmera se relaciona com os personagens, em planos-seqüência belíssimos que captam a vida acontecendo na tela, mas sem esquecer-se do extra-campo, valorizando todas as particularidades de cada membro daquela família, e um som fantástico que enfatiza o onipresente vento da região, além das lindas canções entoadas por uma garotinha. Como se não bastasse, “Tulpan” é engraçado e tenso: dificilmente você verá uma seqüência de parto tão angustiante quanto a existente no filme. E é o parto de uma ovelha! A boa notícia é que o filme foi exibido com legendas em português, o que garante a distribuição para breve.




2. Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes



O filme mais engenhoso e criativo visto nesta Mostra, o português “Aquele Querido Mês de Agosto” é parte documentário, parte ficção. E nem uma coisa, nem outra. O diretor Miguel Gomes registra as festividades do mês de agosto em uma região de Portugal, trazendo relatos de moradores, histórias curiosas de habitantes e particularidades do local. Claramente dividido em duas partes, o filme começa de forma documental para na sua segunda metade trazer uma história de amor fictícia que o espectador poderá identificar vários elementos vistos anteriormente. Mas a ficção se mistura com cenas documentais e uma das coisas que impressiona no filme é a fluidez que nunca torna a experiência de assisti-lo algo difícil, confuso e maçante. Na verdade, é impossível não pedir por uma revisão de “Aquele Querido Mês de Agosto”, tamanha a sua riqueza e complexidade, tanto na realização quanto na quantidade de informações vistas, mas sem deixar o espectador desavisado com um grande “não entendi” na cabeça. Além de tudo é hilário, pontuado por incríveis canções portuguesas. Gomes fez um filme sobre o prazer de se fazer cinema, onde a metalinguagem está presente o tempo todo. É uma obra onde vemos cineasta discutindo com o técnico de som, uma das muitas seqüências geniais de um filme absolutamente maravilhoso e surpreendente.




3. Leonera, de Pablo Trapero



Julia está grávida e, acusada de matar o homem com quem vivia, é enviada para uma prisão onde ficam gestantes e mães com filhos até quatro anos de idade. Sucesso no último Festival de Cannes (mas sem ter levado prêmio algum), este novo filme de Pablo Trapero segue uma tendência do atual cinema argentino de acompanhar trajetórias de personagens comuns com um foco firme na realidade, privilegiando corpos e sensações causadas por estes. Trapero, autor de obras muito interessantes como “Nascido e Criado”, “Família Rodante” e “Do Outro Lado da Lei”, faz seu melhor filme. “Leonera” se passa quase todo numa prisão e o diretor foge de estereótipos como o do “policial cruel”, “prisioneiro malvado”, etc. Trapero esquadrinha cada canto do presídio em lindos movimentos de câmera e acompanha sua protagonista evitando julgamentos morais e estabelecendo vínculo com o espectador sem apelar para maniqueísmos. Nunca sabemos, por exemplo, se Julia cometeu mesmo o crime e, tal como nos filmes dos irmãos Dardenne, só nos resta ficar incomodados ou torcer pela personagem, em seus atos imprevisíveis. A atriz Martina Gusman está excepcional ao dar vida a essa verdadeira força da natureza que encontra no filho a razão de viver. Ao final, lembrei de “Kill Bill”, também sobre uma leoa que faz de tudo por sua cria.




4. Segurando as Pontas, de David Gordon Green



Um oficial da justiça acaba de comprar a “pineapple express”, baseado raro de excelente qualidade. Ao testemunhar um crime, deixa a maconha como rastro que levará os assassinos até seu traficante. Agora ambos têm que fugir e encontrar uma solução para a enrascada que se meteram. No meio de tantos filmes de propostas mais “sérias”, é preciso ressaltar uma obra que se compromete com o mais puro humor e “Segurando as Pontas” traz um amontoado de piadas que faz com que todo o cinema ria alto do início ao fim da projeção. A trupe liderada por Judd Apatow e Seth Rogen faz uma espécie de continuação para o brilhante “Superbad”, que trazia adolescentes se preparando para a maturidade, tentando lidar com sexo, bebidas e, principalmente, a possibilidade de separação do que parece ser mais caro a estes autores, a amizade. “Segurando as Pontas” dá continuidade a esse desenvolvimento da vida, agora com jovens adultos se inserindo no mercado de trabalho, fugindo de compromissos amorosos mais sérios e passando da inocência do álcool para drogas ilícitas. E a amizade entre homens continua sendo a coisa mais séria do mundo. O que faz ser um grande filme é essa possibilidade de percebermos um coerente conjunto, uma visão de mundo muito particular e até mesmo ética da vida, em uma trama absolutamente hilária, de diálogos inteligentes, passando do humor sutil para o mais escrachado com uma facilidade que só os grandes comediantes são capazes. Desde a abertura, seqüência em preto-e-branco engraçadíssima que nos mostra como a maconha foi considerada ilegal nos EUA, o filme nos joga em situações absurdas com resoluções surpreendentes e que pedem toda a aceitação do espectador. Há vários personagens engraçados, mas é James Franco no papel do traficante que se sobressai absoluto, se revelando um ator cômico incrível. Inexplicavelmente, saiu a informação que o filme infelizmente será lançado no Brasil diretamente em DVD. Uma pena, porque pela sessão que estive, seria sucesso garantido.




5. Se Nada Mais Der Certo, de José Eduardo Belmonte



Um filme protagonizado pelo mais novo galã global, Cauã Reymond, pode ser bom? Cheio de preconceito, fui ver “Se Nada Mais Der Certo” e achei não só o melhor filme nacional visto este ano, como o próprio Reymond está muito bom no papel de um jornalista que vive de bicos e, totalmente endividado, irá se envolver com uma pequena traficante e um taxista, na busca de soluções “alternativas” quando nada mais dá certo. O filme de José Eduardo Belmonte é uma pérola ao retratar a difícil vida da classe média brasileira, sem tornar seus personagens representantes de qualquer classe ou de qualquer discurso: eles existem por si mesmos, têm vida própria e o grande achado do filme é ver como estas pessoas constroem laços entre elas em meio à dura realidade que os atravessa. Belmonte foge de clichês, não vitimiza seus personagens ou tem uma visão pessimista da nossa sociedade, fazendo críticas sóbrias e interessantes. Ao menos uma seqüência ficará marcada: um assalto ao som de Saltimbancos, com assaltantes usando máscaras de FHC, Sarney e Collor, em montagem paralela a um debate entre Lula e Serra exibido na TV (o filme se passa durante as eleições de 2006). Esta é uma das muitas cenas bem dirigidas por Belmonte, que aposta em narrações em off, fragmentação da narrativa, frases de efeito que pontuam a trama e outros tantos recursos que nunca tornam a obra algo esquizofrênico, há um todo muito coeso e seguro. No fim, é a história de gente fodida que faz do encontro entre elas maneira de sustentação para a vida. No elenco, destaque absoluto para Caroline Abras que faz da traficante Marcin a personagem mais fascinante e interessante do filme. De se notar também a bela metáfora da figurinha do Campeonato Brasileiro de Futebol que a criança falta para completar seu álbum: a de um jogador que desafiou a corrupção dos cartolas do futebol. Discreto e bonito, como todo o filme.



Outros cinco grandes filmes vistos:


6. Horas de Verão, de Olivier Assayas

7. Sonata de Tokio, de Kiyoshi Kurosawa

8. Lições Particulares, de Joachim Lafosse

9. Encarnación, de Anahí Berneri

10. Acne, de Federico Veiroj





Hélio.

2 comentários:

Celia Kfouri disse...

Já cumprimentei o Fuzii e agora cumprimento você.
Parabéns pelo fôlego para acompanhar os filmes da mostra, e ainda dispor de tempo para vir dividir aqui com a gente.
Vou prestar atençao às indicações de vocês e tentar ver alguns!

e.fuzii disse...

Rapaz, fui ver Leonera e tenho de concordar que é o melhor filme que vi do Trapero. Até por manter o ritmo durante todo o tempo, sempre explorando o máximo de cada situação. O filme é bem construído de uma forma conveniente, eu diria, para Trapero não deixar possibilidades de julgamento (e muito semelhante à premissa de Damages). Acima de tudo, é uma atitude inteligente.

O único deslize é quando o final é antecipado no ato anterior com o telefone de Julia para Marta. Mas o final ambíguo é lindo. Também gostei que a cena mais íntima entre as duas foi cortada, até como alívio para tanta relação carnal estabelecida na prisão. Excelente recomendação.

Abraço.